A clínica ampliada é um modelo de atenção à saúde baseado no conceito de saúde integral, onde a qualidade de vida do indivíduo, e claro, a sua saúde, é vista como resultado de fatores biopsicossociais.
Cada vez mais o modelo chama atenção, conquistando espaço nas redes pública e privada, inovando ao adicionar a perspectiva mais tradicional a subjetividade do sujeito, produto de um tecido social e histórico, modelada de maneira dinâmica.
A nova realidade considera mais do que as questões fisiológicas da saúde, mas trabalha o tratamento caso a caso por meio de um vínculo e do diálogo com o paciente.
Para isso, portanto, é preciso libertar-se do modelo anterior, e produzir um novo ambiente clínico, aberto a experimentações, provocações, movimentos instituintes, uma clínica de afirmação da vida, como aponta Ana Cristina Sundfeld em seu artigo “Clínica ampliada na atenção básica e processos de subjetivação: relato de uma experiência”.
Mais do que falarmos a respeito, é preciso refletir sobre o que é necessário para que a transformação aconteça. Encobrir velhas práticas não é suficiente. Uma mudança como essa requer primeiro a reforma do pensamento de seus atores, aqui, devemos incluir tanto profissionais de saúde como a própria comunidade.
Como toda reforma, estão presentes incertezas, que dão início a um novo processo, mas o que se espera é o desenvolvimento de uma metodologia mais efetiva, benéfica a todos.
Neste artigo apresentaremos em detalhes a proposta da clínica ampliada e discorreremos sobre os desafios da sua implantação.
A clínica ampliada funciona a partir de um conceito de saúde integral, ou seja, é preciso considerar não apenas condições biológicas, deve-se incluir na análise do indivíduo questões sociais, psicológicas, ambientais e até mesmo políticas.
Lembramos aqui o conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde: “situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”.
Na prática, a ideia é a promoção, prevenção, recuperação e reabilitação em saúde envolvendo ações terapêuticas individuais ou coletivas.
Com isso, o sujeito passa a ser o protagonista de sua vida, já que o modelo está centralizado em sua autonomia e qualidade de vida, ou seja, o indivíduo é estimulado a deixar uma posição passiva em relação a sua condição.
Essa seria, portanto, a nova diretriz de atuação dos profissionais de saúde, baseada em uma articulação e no diálogo entre os mais diversos saberes que podem contribuir para uma compreensão mais completa de saúde e dos fatores relacionados ao adoecimento. Em prol da mesma perspectiva é realizada ainda a inclusão da comunidade nas condutas de saúde, tonando o paciente agente na elaboração do seu projeto terapêutico.
Há um crescimento em complexidade, já que a clínica passa a se constituir do encontro entre dois sujeitos singulares, o profissional ou a sua equipe e o indivíduo a ser tratado, porém, também cresce em efetividade, já que a nova dimensão subjetiva considera todos os fatores possivelmente envolvidos no desenvolvimento patológico, trabalhando as individualidades do sujeito.
Em suma, e de maneira mais prática, podemos dizer que a clínica ampliada é:
Com o conceito de clínica ampliada em mente, iremos caminhar para uma compreensão mais adequada de sua aplicação. Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o novo modelo não reduz ou exclui a importância dos diagnósticos e medicação, mas sim, encara a saúde como uma questão mais complexa, considerando novos aspectos como influentes na qualidade de vida das pessoas.
Todo o processo tem início com um longo diálogo entre a equipe de especialistas da clínica e o paciente. Os profissionais devem acolher as queixas apresentadas com respeito e empatia, mesmo aquelas que não tenham relação direta com o seu diagnóstico ou tratamento. A escuta, torna-se nesse momento essencial para descoberta das causas do adoecimento.
Nesse sentido, é preciso ir além dos sintomas e das dores físicas, mas considerar ainda questões psicológicas, sociais e políticas: medos, inseguranças, impressões, condições de vida, a configuração familiar, rotina e outros fatores que influenciam na saúde.
Esse caminho ultrapassa os limites individuais, caminhando em direção a ações junto à família e grupos terapêuticos, por exemplo.
A nova abordagem tira o médico do centro, agora ele não é, pelo menos não sozinho, a figura central. Mas toda a equipe da clínica, o que inclui enfermeiros, psicólogos, educadores físicos e nutricionistas dentre outros profissionais, são igualmente importantes no acompanhamento do caso.
Por trás da clínica ampliada está, como podemos ver até aqui, um desejo por unir os melhores recursos, atendendo o paciente de maneira mais completa, sempre em busca na melhor proposta terapêutica para cada indivíduo.
O médico realiza o diagnóstico e prescreve a medicação, o que muitas vezes acarreta questões emocionais, que podem inclusive contribuir para uma melhor ou pior resposta ao tratamento, e por isso demandam de uma intervenção psicológica. Além disso, não podemos deixar considerar, por exemplo, ainda nesse cenário, a relevância de uma nutrição adequada e da atividade física no manejo de doenças.
Para tornar ainda mais claro o conceito, anexamos abaixo um exemplo retirado da cartilha sobre Clínica Ampliada do Ministério da Saúde.
Um serviço de hematologia percebeu que mesmo tendo disponível toda a tecnologia para o diagnóstico e o tratamento dos pacientes com anemia falciforme, havia um problema que, se não fosse levado em conta, não resolveria a situação de muitos desses pacientes. A anemia falciforme acomete principalmente a população negra. Ora, é um fato importante que a história dessa população é marcada pela discriminação racial, um dos fatores que mais determinam a desigualdade social.
No contexto em que o serviço de hematologia trabalha, o tratamento ficaria muito limitado se os técnicos e responsáveis do serviço ignorassem esta questão, uma vez que a sobrevivência dos pacientes está em jogo. Assim, no caso dos portadores de anemia falciforme que, por efeitos das suas condições socioeconômicas desiguais, só tenham acesso a trabalhos braçais, é necessário criar novas opções de trabalho para eles, uma vez que não poderão mais exercer esse tipo de trabalho.
O serviço então se debruçou sobre o problema e propôs buscar ajuda em escolas de computação para oferecer cursos a esses usuários, desde que o desejassem, abrindo-lhes assim novas opções de trabalho e melhorando a sua expectativa de vida. O serviço de saúde poderia ter se concentrado no problema genético e em toda a tecnologia que ele dispõe para diagnóstico e tratamento, ignorando, como ainda é muito comum de acontecer, a história e a situação social das pessoas que estão sob seus cuidados.
No exemplo apresentado acima fica clara a importância da clínica ampliada para a comunidade. Outros exemplos caberiam aqui, demonstrando a necessidade de uma atenção mais completa a todos para uma intervenção mais efetiva em prol da qualidade de vida da população.
Seguiremos, portanto, destacando alguns dos principais benefícios da nova abordagem proposta.
Agora, como protagonista do atendimento, o paciente desfruta de melhorias em sua saúde como um todo. A clínica ampliada torna o indivíduo participante do desenvolvimento das estratégias que visam recuperar sua saúde e otimizar a sua qualidade de vida ao promover autonomia e responsabilidade.
Enquanto desenvolve uma postura ativa em relação a si, o paciente conta com auxílio de uma equipe completa, onde suas questões biológicas e psíquicas serão avaliadas e tratadas por meio de um atendimento humanizado e personalizado. Assim, é possível ao paciente encontrar uma solução definitiva para a sua condição, considerando, claro, seus aspectos reais.
Pense, por exemplo, em um paciente que sofre com dores crônicas. Normalmente, esse indivíduo desenvolve outros distúrbios associados, como insônia e depressão, por exemplo. Diante disso, é necessária a intervenção de diferentes especialistas para uma recuperação completa. Essa atuação conjunta já é realidade através da nova abordagem.
A clínica ampliada possibilita também uma maior proximidade entre o paciente e os profissionais de saúde, o que é uma grande vantagem em relação à efetividade do tratamento.
O modelo também beneficia médicos e demais profissionais de saúde. Amplia-se o diálogo entre os especialistas, e entre profissionais e pacientes, tornando os diagnósticos mais precisos e a proposta terapêutica mais eficaz.
Além disso, trabalhar em uma clínica ampliada acresce a reputação do profissional, já que permite uma experiência diferenciada de trabalho, onde há uma atuação mais ampla e profunda em relação à saúde e qualidade de vida dos doentes. A nova abordagem é uma oportunidade para o profissional se desenvolver, aprimorar suas habilidades e oferecer um atendimento cada vez melhor a todos.
O primeiro passo para implementação da clínica ampliada é a compreensão e admissão dos limites ontológicos do saber sobre a singularidade do sujeito. Embora nem sempre refletimos a respeito, mesmo o estudo biomédico se baseia em ontologia, ou seja, na generalização. Até por isso, muitas vezes a atuação em saúde se dá de forma parcial.
Ninguém pode ser conhecido e definido em sua totalidade a partir de um diagnóstico. Na clínica ampliada as diferenças são consideradas para proposta terapêutica, nascendo novas possibilidades de intervenção.
A PNH disponibiliza uma cartilha com orientações essenciais para equipes de saúde e usuários, trabalhando pontos de maior relevante na discussão anteriormente apresentada:
A equipe de saúde está se deixando levar pelos próprios valores?
O que pode ser ótimo e correto para o profissional pode estar contribuindo para o adoecimento de um usuário.
Estão percebendo como o usuário se vê “portador do diagnóstico”?
Às vezes, o próprio diagnóstico já traz uma situação de discriminação social que aumenta o sofrimento e dificulta o tratamento.
Estão produzindo autonomia para com o usuário?
Incentivar e capacitar o usuário para fazer sua insulina em casa, por exemplo, preservando os cuidados básicos na administração é produzir autonomia.
Estão atentos e incentivando o usuário a viver, apesar da doença e independente do grau de limitação que lhe provoca?
Há pessoas que conseguem inventar saídas diante de uma situação imposta por certos limites. Elas enxergam o evento mórbido como uma possibilidade de transformação, o que não significa que elas deixem de sofrer, mas que encontram no sofrimento e apesar dele uma nova possibilidade de vida. Outras precisam de algum tipo de ajuda para isto.
Na prática, essa nova maneira de enxergar a saúde e a intervenção clínica se traduz em:
Logo de cara, devemos analisar dois aspectos principais: os protocolos e cadeias de cuidados e a extrema variedade de casos. Como trabalhar esses aspectos sem construir uma metodologia organizacional padronizada em relação a condutas diagnósticas e terapêuticas?
Infelizmente uma gestão tradicional não é capaz de suprir de forma adequada nosso segundo aspecto, que diz respeito às diferenças significativas entre um caso e outro. Quanto mais ampla é a zona de atuação, já que estamos falando em uma intervenção integral, maiores as distinções e também o desafio.
Um certo grau de autonomia passa a ser necessário no trabalho clínico. Assim, uma relativa liberdade assegura a motivação dos profissionais e dá espaço a considerações mais singulares sobre os sujeitos.
Em suma, é preciso fugir da lógica de linha de produção, já muito presente na área da saúde: protocolos, fluxograma, cadeias de cuidado e acreditação.
A multiplicidade de especialidades atuando sobre um mesmo caso, os inúmeros serviços de apoio diagnósticos e terapêuticos combinados a necessidade de uma gestão adequada e integrada da saúde do paciente como um todo é o desafio.
Dentre outras propostas, a solução prática para isso tem sido a constituição de documentos que descrevem o percurso devido a cada doença ou problema de saúde.
O processo é dividido em etapas, onde em cada uma delas há um profissional responsável. É necessário, contudo, um sistema de regulação, ou seja, referência e contra-referência, bem definido para que o atendimento tenha o direcionamento e controle adequado.
Essa tendência estrutural de distribuição, por outro lado, torna impossível uma gestão unificada, levando a repetição de exames, elevação da média de permanência em casos de internação, e a um considerável aumento de custos.
Diante disso, não podemos negar a existência de obstáculos políticos, estruturais e culturais para a realização de uma reforma como essa. Nem por isso, devemos estagnar a mudança.
Escutar significa, num primeiro momento, não evitar toda queixa ou relato do usuário que não interesse diretamente ao diagnóstico e ao tratamento. Mais do que isto, é preciso ajudá-lo a reconstruir (e respeitar) os motivos que ocasionaram o seu adoecimento e as correlações que ele estabelece entre o que sente e a vida. Ou seja, perguntar porque ele acredita que adoeceu e como ele se sente quando tem este ou aquele sintoma.
Quanto mais a doença for compreendida e correlacionada com a vida, menos chance haverá de se tornar um problema somente do serviço de saúde, e não do sujeito doente, ou seja, é mais fácil evitar uma atitude passiva diante do tratamento. Evidentemente, não é possível (nem desejável) fazer isto o tempo todo para todo mundo, mas é possível escolher quem precisa mais, e é possível temperar os encontros clínicos com estas frestas de vida.
Tanto profissionais quanto usuários, individualmente ou coletivamente, transferem afetos. Um usuário pode associar um profissional com um parente, e vice-versa. Um profissional que tem um parente com diabete não vai sentir-se da mesma forma ao cuidar de um sujeito com diabete, do que um profissional que não tem este vínculo afetivo. Tudo isso tanto pode ajudar quanto atrapalhar a construção do vínculo e do projeto terapêutico.
Ainda é muito comum que profissionais que cuidam de pessoas com doenças crônicas passem anos começando todos os encontros com a mesma pergunta: “o paciente cumpriu as suas ordens? Tomou a medicação; fez a dieta?” Muitas vezes esta atitude acaba passando a impressão de que estamos mais preocupados em ser obedecidos, do que com a pessoa e a sua vida. E também acontece que algumas dessas pessoas doentes desenvolvam o hábito de “se divertir” com o serviço de saúde, alardeando tudo que fizeram de “errado”, para desespero dos profissionais.
É necessário aprender a prestar atenção nesses fluxos de afetos para melhor compreender-se e compreender o outro, e poder ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença de modo proveitoso para ela.
Neste processo, a equipe de referência é muito importante porque os fluxos de afetos de cada membro da equipe com o usuário e familiares são diferentes, permitindo que as possibilidades de ajudar o sujeito doente sejam maiores. Sem esquecer que dentro da própria equipe essas transferências também acontecem.
Infelizmente, o mito de que os tratamentos e intervenções só fazem bem é muito forte.
Vivemos, portanto, uma epidemia de uso inadequado de medicações e exames, causando graves danos à saúde e desperdício de dinheiro. Os diazepínicos e antidepressivos são um exemplo. Aparentemente, muitas vezes, é mais fácil para os profissionais de saúde, e também para os usuários, utilizar esses medicamentos, do que conversar sobre os problemas e desenvolver a capacidade de enfrentá-los.
O uso abusivo de antibióticos e a terapia de reposição hormonal são outros exemplos. Quanto aos exames, também existe uma mitificação muito forte. É preciso saber que muitos deles têm riscos à saúde e limites, principalmente quando são solicitados sem os devidos critérios.
Muitas doenças têm início em situações difíceis, com o processo de luto, desemprego, prisão de parente, etc., e a persistência dessas situações pode agravá-las. É importante, nesses casos, que a equipe tenha uma boa capacidade de escuta e diálogo, já que parte da cura ou da melhora depende de o sujeito aprender novas formas (menos danosas) de lidar com as situações agressivas.
A ideia de que todo sofrimento requer uma medicação é extremamente difundida, mas não deve seduzir uma equipe de saúde que aposte na capacidade de cada pessoa experimentar lidar com os revezes da vida de forma mais produtiva. Evitar a dependência de medicamentos é essencial. Aumentar o interesse e o gosto por outras coisas e novos projetos também é.
A vida é mais ampla do que os meios que a gente vai encontrando para que ela se mantenha saudável. O processo de “medicalização da vida” faz diminuir a autonomia e aumenta a dependência ou a resistência ao tratamento, fazendo de uma interminável sucessão de consultas, exames e procedimentos o centro da vida.
A medicação deve ser encarada como se fosse um pedido de tempo numa partida esportiva: permite uma respirada Clínica ampliada e compartilhada e uma reflexão para continuar o jogo. Mas o essencial é o jogo e não sua interrupção.
Para que todo o aparato de ferramentas e através dele as vantagens discutidas aqui sejam realmente aplicadas em benefício da sociedade, é necessário que a atenção básica atue com o dispositivo da clínica ampliada.
Dessa forma, é possível estender o seu escopo de atuação e portanto, resolutividade. O processo de tornar isso uma realidade através do SUS é desafiador, já que é preciso trabalhar com as diferentes demandas das populações usuárias em cada região do país, trabalhando suas multifacetas e adaptando o atendimento a sua realidade conjuntural.
Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASD) têm sido um importante recurso nesse sentido, pois permitem serem trabalharas as diferenças, conflitos, afetos e poderes dentro da equipe, e a interação entre os diferentes sujeitos e saberes.
Contudo, há ainda muito o que se avançar em prol da implantação da clínica ampliada de maneira efetiva na rede pública e privada de atendimento à saúde. Essa transformação só será possível mediante esforço e cooperação de todos, profissionais e pacientes. Já avançamos, mas há ainda um longo caminho pela frente.
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